História do Processo de Individualização da Criança: Reflexos na Odontologia
1/10/2008                  
Profa. Dra. Andiara De Rossi
Resumo
A  visão e o interesse que se tem pela criança hoje em dia, bem como o  relacionamento entre o adulto e a criança, sofreram importantes mudanças  ao longo do tempo. A individualização da criança é importante nos  direcionamentos de atitudes em Odontopediatria. O conhecimento da  atenção à  criança a partir de uma perspectiva histórica permite fornece  elementos para que se busque a compreensão de seu sentido e significado  dentro de um contexto mais amplo. Este artigo tem como objetivo  apresentar as diferentes concepções da criança e de sua educação dentro  da família em diferentes contextos sócio-histórico-culturais, que  culminaram com a criação da especialidade de Odontopediatria.
Artigo
Historicamente,  a Odontologia se direcionou para o atendimento de crianças a partir dos  6 anos de idade, deixando em planos secundários a atenção voltada para a  gestante e para o bebê (paciente na faixa de zero a três anos de  idade). Este fato, ocorreu principalmente devido a problemas referentes  ao acúmulo de doença, ao estabelecimento de prioridades e à deficiência  de recursos humanos e financeiros na área da saúde bucal. Ainda hoje, um  fator que limita a atenção odontológica aos bebês é a influência  cultural da população, incluindo profissionais de saúde, que acredita  não ser necessário o tratamento odontológico até que a dentição decídua  esteja completa, ou até os 3 anos de idade, quando a criança apresenta  condições psicológicas que possibilitem seu atendimento. Entretanto,  diante dos novos conhecimentos sobre psicologia infantil e sobre a  importância da manutenção dos dentes decíduos no arco, até sua  esfoliação, os conceitos sobre o atendimento Odontopediátrico sofreram  profundas e importantes transformações.
Durante séculos predominou na  Europa ocidental uma consciência “naturalista” da vida e da passagem do  tempo. Até o século XIX existia uma sociedade rural que atribuía à  terra-mãe a origem de toda forma de vida. A terra, considerada fonte de  fertilidade, era responsável pelo início e pelo final da vida. Os ritos  de fertilidade eram realizados em pedras, árvores e fontes como se a  semente da criança estivesse na natureza. O indivíduo saía da terra,  através de sua concepção, e a ela voltava através da morte. Sob a terra  estavam almas de ancestrais esperando reencarnação. Existia o hábito de  dar às crianças o nome dos avós para assegurar a continuidade da  família. Nada era mais grave que a esterilidade do casal, pois  interrompia a continuidade da linhagem. Assim, existia a idéia de um  mundo pleno, uma grande família de vivos e mortos, sempre igual em  número.
O arco da vida, o qual o mundo seguia, consistia em uma  renovação sem fim que estabelecia um ciclo vital circular de sucessão de  gerações. Nesse contexto, o corpo da pessoa não era apenas seu mas sim  da família toda e dos ancestrais mortos. Havia uma contradição entre o o  corpo coletivo, que garantia continuidade da linhagem, e o corpo  individual e autônomo, no qual o indivíduo poderia “viver a própria  vida”. O corpo não era autonomia da pessoa. O indivíduo dispunha do  próprio corpo apenas se não contrariasse os interesses da família, não  podendo assim viver a vida de sua maneira. 
A criança também era  considerada como parte do corpo coletivo. Nesse sentido era uma criança  pública. No entanto, ao nascimento era incapaz de satisfazer suas  necessidades vitais sozinha. Assim, tinha um estreito laço de união com a  mãe, o que a tornava privada. Ao desmamar, aos 24 ou 30 meses, a  criança passava a ter uma educação pública. O público e o privado  coexistiam na criança que dependia tanto de um como de outro. Ainda, a  criança nascia em local privado, na casa de seus pais, mas tal ato  tornava-se público na presença de parentes e vizinhos. Os primeiros  passos eram simbólicos, um ritual público para demonstração da  continuidade da linhagem, e por isso realizados no local onde repousavam  os ancestrais: cemitério ou igreja. 
A primeira infância era a época  das aprendizagens. Aprendizagem do espaço da casa, aldeia, das  redondezas, das regras da cominidade, dos brinquedos e da relação com  outras crianças da mesma idade ou mais velhas. A partir de 7 e 8 anos,  os meninos iam com o pai aos campos e as meninas ficavam com a mãe  aprendendo seu futuro papel de mulher. A educação da criança e  adolescente visava o fortalecimento do corpo, dos sentidos e a  transmissão da vida, assegurando a continuidade da família. Assim, a  educação era comum a todos e havia pouca intimidade 
No final do  século XIV, surgem sinais de uma nova relação com a criança nos meios  abastados da cidade. Trata-se de uma vontade cada vez mais forte de  preservar a vida, reduzindo as demonstrações de afetividade. No começo  da década de 1580, quando o filho de Scevole estava quase perdendo um  filho doente, desacreditado pelos médicos, passou a pesquisar tudo  relacionado às crianças e os segredos da física e da natureza. Como era  muito inteligente, evitou a morte do filho. Ficou conhecido por  ressaltar a meneira de alimentação das crianças em um poema. Essa  atitude representa as novas elites sociais do Renascimento.
Essa  vontade de salvar a criança aumenta no século XVII, e madame de Sévigné  expressa bem essa vontade quando sua neta fica doente e ela diz; “não  quero que ela morra”. Antes os pais também não aceitavam a perda do  filho e buscavam cuidados médicos mas a consciência do ciclo vital era  diferente e o único recurso para eles após a morte era ter outro filho. 
A  recusa da doença da criança constitui um aspecto de uma nova  consciência da vida e do tempo. A vontade de curar, revela um novo olhar  que o homem lança sobre si mesmo. Entretanto, os médicos não davam  conta de atender a demanda de cuidados que surgia por toda parte. Nesse  contexto ressaltou-se a idéia da prevenção das doenças. A prevenção era o  meio eficaz para os pais preservarem a saúde de seus filhos, sem o  recurso da medicina. Atualmente esse contexto de prevenção das doenças  ainda é enfatizado juntamente com a promoção de saúde, ou seja sabe-se  que a forma mais eficaz de prevenir a doença é promovendo a saúde. 
Inicia-se  o dilema entre a continuidade da linhagem e o crescente desejo do  indivíduo de viver plenamente sua vida e dela dispor com liberdade. Até  então o indivíduo não se preocupava consigo mesmo e agora passa a pensar  em seus próprios interesses e aprende que o tempo é seu: o tempo de  viver. Visando resolver o dilema entre o desejo de viver e a vontade de  perpetuar, os comportamentos familiares começam a se modificar.
No  século XVIII, a Revolução Industrial altera a economia para a  propriedade privada. O surgimento do espírito calculista, originado da  propriedade privada, não se restringe ao comércio. A medida que o poder  do indivíduo aumenta, o espírito da linhagem enfraquece. Antes os  vínculos parentais eram carnais, de propriedade coletiva do corpo, mas  agora os vínculos começam a se dissociar, o corpo passa a ser  individual. Cada indivíduo protege o seu corpo do sofrimento e passa a  perpetuá-lo através dos filhos. Através dos filhos os indivíduos podem  assegurar suas propriedades privadas através de heranças, única forma de  manter os bens da família como individuais. Inicia-se a valorização da  criança como bem privado e não da coletivo, um meio de assegurar a  propriedade conquistada. 
Uma consciência linear de existência e de  tempo progressivamente sucede a consciência do ciclo vital circular,  inicialmente entre os setores ricos, nas grandes cidades e depois nos  burgos e no campo. Nesse contexto cada indivíduo tem seu próprio peso,  seu poder e sua própria personalidade na estrutura familiar. A família  recolhe-se a um espaço doméstico mais íntimo. A estreita relação com a  terra mãe tende a desaparecer, há menos lugar no tempo para consagrar os  ancestrais e os problemas de esterilidade dos casais não se resolvem  com rituais naturais mágicos, como na consciência do ciclo vital  circular.
Na primeira parte do século XVIII, já se evidencia um novo  sentimento da infância, uma mudança cultural que ocorre durante um  período de tempo extenso, sem cronologia precisa. Sabe-se que com o  surgimento das cidades (Itália, França e Inglaterra) a família moderna  fica reduzida ao casal e aos filhos. Logo que nasciam, as crianças  entravam num universo de coibições, representados pelo uso de faixas,  que lhe impediam total movimentação corporal, e de tocas e gorros que  deformavam a cabeça. Nessa nova etapa, a criança podia ainda receber  aleitamento por uma ama estranha à família. Os moralistas  desaconselhavam esta prática pois acreditavam que era perigoso para uma  criança ainda “inacabada” ser alimentada por uma mercenária pois, na  consciência naturalista o aleitamento era considerado uma tranfusão de  espíritos da natureza, e a identidade da criança corria o risco de ser  afetada. Essa separação temporária entre mãe e filho muitas vezes  resultava na morte do bebê e era condenada por alguns. 
Valores  diferentes impoem-se na vida urbana, muito diferentes da vida rural  anterior. No ciclo vital, a posição da mulher está apenas como  reprodutora. Podia-se escolher entre entregar ou não o filho a uma ama. A  natureza continuava falar em favor do filho criado pela mãe. Assim, as  questões começam a receber respostas variadas. Alguns pais entregavam  seus filhos à nutriz e outros encontravam na companhia dele  “divertimento e alegria”.  
Com as novas relações estabelecidas com a  criança, os novos pais, “apaixonados demais pelos filhos” influenciam o  comportamento de seus filhos e poderiam não perceber o mal que lhes  faziam ao mimá-los, deixando fazer tudo que queriam, e passariam  maus-hábitos para a vida adulta. A educação privada conferia muito  espaço para a afetividade.
Assim, a longo do século XVII, a Igreja e o  Estado retomam o sistema educativo, numa transferência do privado ao  público, visando principalmente controlar a sociedade e modelar a  criança para o novo Estado-Nação. Essa nova cultura educativa se  estabelece nos colégios, que recebem aprovação dos pais, convencidos que  é preciso reprimir instintos primários de seus filhos e sujeitar seus  desejos ao controle da razão. Colocar o filho na escola significa tirar  da natureza. A nova educação modela as mentes seguindo a tendência do  individualismo. A consciência de vida não visa o respeito às antigas  solidariedades, mas a valorização do indivíduo e o fornecimento de  conhecimento que seus pais não poderiam dar. Assim se dá a passagem da  família tronco à família nuclear e de um sistema de educação pública e  comunitária a uma educação pública do tipo escolar visando integrar a  criança na coletividade. 
O papel mais importante da Igreja e do  Estado foi na difusão de modelos ideológicos que “privatizavam” a imagem  da criança na sociedade. Isso fortalece a emergência da criança como  indivíduo na sociedade ocidental. A Igreja difunde dois modelos de  criança: criança mística e Criança-Cristo. A imagem do homem santo  estava no menino santo: idéia da santidade infantil. A infância mística,  de dedicação à Deus propunha a posteridade em nível espiritual, levando  a ruptura do ciclo naturalista da vida e do tempo. 
A criança, para  fazer sua aprendizagem essencial, sempre dependeu ao mesmo tempo do  “público”, do exterior, e do “privado”, dos pais. Algumas vezes  dependendo mais de um que de outro, dependendo dos séculos. Assim, o  estudo da situação da criança remete a níveis de representações e  práticas. Em síntese, o sentido da evolução é aparentemente claro: cada  vez mais se atribui à criança a posição que hoje ela ocupa na família.
De  acordo com o autor, é difícil acreditar que a um período de indiferença  com relação a criança teria suscedido outro durante o qual, com ajuda  do “progresso” e da “civilização”, teria prevalecido o interesse. “O  interesse ou a indiferença com relação à criança não são realmente  característica desse ou daquele período da história. As duas atitudes  coexistem no seio de uma mesma sociedade, uma prevalescendo sobre a  outra em determinado momento por motivos culturais e sociais que nem  sempre é fácil distinguir.” A indiferença medieval pela criança é uma  fábula pois, como vimos, os pais se preocupavam com a saúde e com a cura  de seus filhos.
Assim, devemos interpretar o “sentimento da  infância” no século XVIII, quer dizer; “nosso sentimento da infância”,  como sintoma de uma profunda transformação nas crenças e estruturas de  pensamento da atitude ocidental com relação a vida e ao corpo. A um  imaginário da vida de linhagem e comunidade que substituiu o da família  nuclear. A uma situação em que o “público” e o “privado” desempenhavam  seu papel na formação da criança, sucedeu outra que amplia o direito da  mãe e, sobretudo, do pai sobre o filho. No individualismo crescente,  disposto a favorecer o desenvolvimento da criança encorajado pela Igreja  e pelo Estado, o casal delegou parte de seus poderes ao educador. Ao  modelo rural suscedeu o modelo urbano e o desejo de ter filhos não para  assegurar a continuidade do ciclo, mas simplesmente para amá-los e ser  amados por eles.
Os reflexos dessas mudanças também aparecem na  Odontologia, data de 1897 o primeiro registro de serviços profissionais  dedicados à criança, e de 1925 o primeiro livro sobre Odontologia  Infantil, ambos nos EUA. No Brasil, em 1923 Pereira lança o livro  Educação Dentária da Criança, enfatizando que “é necessário começar a  profilaxia de cárie no ventre materno, com formação de órgãos dentários  sadios e bem calcificados”, já preconizando a necessidade de limpeza dos  dentes logo que irrompessem. O primeiro relato de atenção Odontológica  voltada para bebês, data de 1986, com a criação da Clínica de Bebês da  Universidade Estadual de Londrina (UEL), que oferece medidas educativas  direcionadas aos pais, além de tratamento Odontológico direcionado  especificamente aos bebês. O programa, que dura 15 anos, mostra seus  resultados positivos a favor de uma Odontologia preventiva, e transfere  esta prática ao setor público, Universidades e profissionais que exercem  atividades em clínica particular. A partir de então, surgiram diversos  relatos na literatura sobre experiências com bebês, como o de Goepferd,  sobre um trabalho desenvolvido durante 18 meses, que envolveu a  participação de 180 bebês em um Programa de Saúde Bucal na Universidade  de IOWA. Desta experiência, concluiu-se que o contato com os pais e  crianças, por meio da demonstração de técnicas de higiene bucal e  avaliação individual da situação familiar foram imperativos para a  obtenção de ótimos resultados em saúde bucal.  
REFERÊNCIAS
1. CALDANA,  R. H. L., BIASOLI ALVES,, Z. M. M. Psicologia do desenvolvimento:  contribuição à Odontopediatria. Rev. Odont. USP, v. 4, p. 256-60, 1990.
2. GÉLIS,  J. A Individualização da Criança. In: Chartier, R. (org). História da  vida privada 3: da Renascença ao Século das Luzes. SP: Cia das Letras,  1991.
3. TORRIANI, D.D. Análise do comportamento de bebês durante o  atendimento odontológico: relação entre sexo, idade e dentes irrompidos.  1999. 139f. Dissertação (Mestrado em Odontologia)- Faculdade de  Odontologia de Araçatuba, Universidade Estadual Paulista “ Júlio de  Mesquita Filho”, Araçatuba.
4. WALTER, L.R.F.; FERELLE, A.; ISSAO, M. Odontologia para o Bebê. São Paulo: Artes Médicas, 1996.
Sobre a Autora:
Cirurgiã-Dentista, Especialista em Odontopediatria
Mestre em Odontopediatria pela Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto – USP
Doutora em Patologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP
Pós-doutoranda em Odontopediatria pela Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto – USP
contato: andiaraderossi@bol.com.br
>> Pessoal, quem achou interessante vale apenas dá uma olhada, vários artigos sobre muitas coisas, como por exemplo mercado de trabalho e marketing odontológico, entre outras utilidades para quem faz arte da odontologia. 
'Natã Cavalcante
Natã, eu primeiro pensei:
ResponderExcluir- Legal, o Natã postou algo bem interessante sobre sociedade e odontologia.
Mas, logo em seguida, pensei bem que ele poderia ter feito um resumo, uma síntese. E senti uma preguiça de ler (ou ansiedade, porque estou tão ocupado e sem tempo). Mas resolvi ler, afinal eu é que tenho estimulado vocês a criar e alimentar os blogs.
Quando comecei a ler de fato o texto, vi que tinha sido uma excelente seleção de leitura. Parabéns. E notei também que talvez tenha sido bom ter deixado na íntegra.
Assim, recomendo aos que entrarem aqui a lerem o texto completo, não uma, mas diversas vezes.
Este texto tem uma visão histórica e antropológica interessante e pode contribuir para uma formação mais sólida dos futuros dentistas.
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Novamente, parabéns.